domingo, 10 de fevereiro de 2013

XV

    A porta aberta era para Heathcliff uma coisa demasiado tentadora para que resistisse a entrar; provavelmente havia suposto que eu me esquivara ao prometido e resolvera confiar na sua audácia. Catherine olhou aflita para a porta do quarto. O intruso não descobriu à primeira aquela que procurava, e então Catherine, com um gesto, indicou-me que o devia ajudar; mas antes que me desempenhasse da incumbência já ele aparecia ao limiar e, com duas passadas, estava junto dela e a tomava nos braços.
    Heathcliff, por cinco minutos, não falou nem a largou, e durante esse tempo deu-lhe mais beijos do que lhe dera em toda a vida, julgo eu. Mas foi Catherine quem o beijou primeiro, e vi claramente que ele nem ânimo tinha de lhe olhar para a cara. Desde o primeiro instante convencera-se, tal como eu, de que não havia cura possível, que ela estava condenada a morrer.
- Oh, Cathy! Oh, minha vida, como poderei suportar isto? - eis as primeiras palavras que ele proferiu, e num tom que denotava bem o seu desespero. E então fixou-a com tal ardor que pensei que a própria intensidade desse olhar lhe faria arrasar os olhos de água; mas a angústia queimava-os secando-lhe as lágrimas.
- Que é isso? - disse Catherine, inclinando-se para trás e fixando-o também de cenho subitamente carregado: o seu humor era um catavento, variando sempre ao sabor dos seus caprichos. - Tu e o Edgar destroçaram-me o coração, Heathcliff, e agora vens lamentar-te junto de mim como se fosses tu quem merece compaixão. Não tenho pena de ti! Mataste-me... e estás florescente! Que ar saudável! Quantos anos pensas viver depois da minha morte
    Heathcliff, que pusera um joelho em terra para a abraçar, tentou erguer-se, mas ela agarrou-o pelo cabelo e manteve-o na mesma posição.
- Oxalá pudesse prender-te aqui até morrermos ambos - disse ela amargamente. - Não me importaria que sofresses. Não me afligem nada os teus sentimentos. Por que não haverias de sofrer? Eu sofro tanto! Esquecer-me-ás? Serás feliz quando eu estiver debaixo da terra? Dirás daqui a vinte anos: «Eis a sepultura de Catherine Earnshaw. Amei-a há muito tempo, e desgostou-me perdê-la. Mas isso já passou. Desde então já amei muitas outras. Os meus filhos são-me mais queridos do que ela foi, e, quando chegar a minha hora, terei mais pena de os deixar do que alegria em reencontrá-la.» É isto que vais dizer, Heathcliff?
- Não me tortures para que eu não enlouqueça como tu! - bradou ele, sacudindo a cabeça para se libertar e rangendo os dentes.
    Aqueles dois, para um espectador desinteressado, formavam um quadro estranho e terrível. Bem podia Catherine considerar que o céu seria para ela a terra do exílio, a menos que, com os seus despojos mortais, perdesse também o seu carácter. Mostrava agora, no rosto lívido, uma feroz ânsia de vingança, assim como nos lábios sem cor e nos olhos cintilantes. Nos dedos fechados conservara uns poucos de cabelos que arrancara. Quanto ao companheiro, enquanto com uma das mãos se levantava, segurava-lhe com a outra o braço, e com tal falta de consideração pelo estado dela que, ao largá-la, vi quatro nódoas vermelhas na pele branca.
- Deves estar possessa do demónio! - exclamou ele em tom selvático - para me falares dessa maneira à beira da morte. Não vês que todas essas palavras me ficarão marcadas a ferro na memória, e cada vez mais fundas com o decorrer do tempo? Bem sabes que mentes ao dizer que te matei, e sabes também, Catherine, que mais depressa me esquecerei de mim do que de ti. Não basta ao teu diabólico egoísmo que, quando descansares em paz, eu me contorça nos tormentos do Inferno?
- Não descansarei em paz! - volveu ela, gemendo e retomando a sensação da sua fraqueza física pelas pancadas violentas e desiguais do seu coração, que batia visível e audivelmente sob aquela agitação excessiva. Não disse mais nada até que o paroxismo lhe passasse. Então, com mais brandura, prosseguiu: - Não te desejo, Heathcliff, maior tormento do que o que sofro. Só quero que nunca nos separemos. E se um dia alguma das minhas palavras te angustiar, pensa que eu sinto a mesma angústia debaixo da terra e, por amor de mim, perdoa-me! Aproxima-te e torna a ajoelhar. Nunca na tua vida me fizeste mal. Se alimentas contra mim algum rancor, isso será pior recordação do que as minhas palavras desabridas. Não queres aproximar-te? Anda cá!
[...]
   Os olhos muito abertos, e finalmente humedecidos, pousaram-se sobre ela num arrebatamento. O peito arfava-lhe de maneira convulsiva. E aqueles dois seres, que estavam afastados um do outro, num instante se juntaram. Catherine deu um salto e ele amparou-a, fechando-a num abraço do qual julguei que a minha senhora não sairia viva; de facto, tive a impressão de que ela estava inerte.
[...]
    Catherine fez um movimento, o que me sossegou mais o espírito. Ergueu a mão para enlaçar o pescoço de Heathcliff e aproximar o rosto do seu. Entretanto, ele enchia-a de carícias frenéticas, dizendo em tom desvairado:
- Provas-me agora como tens sido cruel... cruel e falsa. Por que me desprezaste? Por que atraiçoaste o teu próprio coração, Cathy? Não tenho uma só palavra para te consolar. Mereces isto. Mataste-me. Sim, podes beijar-me e chorar e arrancar-me beijos e lágrimas, mas eles queimar-te-ão... tornar-te-ão amaldiçoada. Amavas-me... então que direito tinhas de me deixar? Que direito? Responde! Pelo simples capricho que sentias pelo Linton? Porque nem a dor, nem a degradação, nem a morte, nem nada que Deus ou Satanás pudesse infligir-nos conseguiria separar-nos... Mas tu fizeste-o, por tua livre vontade! Não te despedacei o coração; tu própria é que o despedaçaste e, com isso, despedaçaste o meu. Tanto pior para mim se sou saudável! Preciso de viver? Que espécie de vida será quando tu... oh, meu Deus! Quererias tu viver com a alma num túmulo?
- Deixa... deixa-me em paz! -suplicou Catherine entre soluços. - Se procedi mal, morro pelo que fiz. Acho que basta! Também me abandonaste, mas não te censuro. Perdoo-te. Perdoa-me igualmente.
- É difícil perdoar, vendo esses olhos, sentindo os ossos dessas mãos quase à flor da pele - respondeu Heathcliff. - Beija-me outra vez e não me deixes ver os teus olhos. Perdoo o que me fizeste. Amo o meu assassino... mas o teu, como posso perdoar-lhe?

- Emily Brontë, in O Monte dos Vendavais.

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