segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Baby Teeth

When you call your husband to tell him you’ve had a miscarriage he’s not going to care. He ripped your body up like a lawn mower chewing grass and your ribs expanded to match the slow outward bulge of your stomach, and he couldn’t care less. Maybe you lost it (and you don’t want to call it “it” but you never named it, paged through all the books and never settled on one, but for lack of a better word you’ve got to call it that) in the bath, or riding the bus or walking to work. Who knows. But wherever it happened, however it happened, that doesn’t change the fact that you lost it.
When you go in for a routine checkup weeks later and the doctors say there’s scar tissue down there, too much to give it another try, you’ve got the pills in the cupboard but you’re too afraid to use them. You start thinking of your body as a sinking ship, going down further every second into the dark waters. There’s the deck and it’s splintered and ragged, every wooden beam pulsating with grief. And somewhere out there in the distance is an iceberg and you’re going to hit it. It’s only a matter of when.
Your husband’s not going to give a fuck about the blood between your legs. You’re drunk on your own pain; he’s drunk on the real stuff. The heart wants to give in. So do the lungs and the kidneys. Even the throat wants to close. You can’t stop thinking about those tiny feet, those fingers that would have wrapped around yours. The whole upstairs attic is still decorated with the crib and the streamers and the lights and stuffed animals. The crib is still empty but your mind fills it in.
Let’s pretend the local museum calls up and wants to know if they can display the bones. Let’s pretend you tell them no.
Let’s pretend they’re already displayed in your heart.



- Meggie C. Royer, in Writings for Winter (blog).

sábado, 4 de janeiro de 2014

A Outra Coisa

30 de Novembro

    Chega o momento em que me perco, em que tenho medo de mim mesmo, em que me atemoriza o som da minha própria voz. Quem sou eu? Os outros? São os outros? São eles que falam, que ordenam, que me impelem? Eu sou os mortos! Eu sou os mortos! Eu sou uma série de fantasmas, que se açulam entre mim e mim. Reconheço-os. O gesto esboçado há milhares de anos, e perdido, consumido, consegue hoje realizar-se, o gesto que a morte calou numa boca ignorada, faz eco no mundo. Todos os sonhos são realidades, os mais altos, os mais humildes, os mais belos e os mais grotescos. Só os sonhos são realidade nesta noite quieta e caiada, com uma mancha vermelha de pólo a pólo.
   (...)
    A morte faz estremecer o mundo até à raiz. A morte já não tem a mesma significação. A morte é agora inútil e anda à solta no infinito, desgrenhada, dorida e dourada. Desespera-se. Tenho medo de lhe tocar. O drama que se passa em cima é maior que o que se passa em baixo. É pior este tumulto de inferno, este clamor de que não chegam as vozes, esta força incoerente de pé - todas as forças de pé - posta a caminho para o desconhecido. É pior. E a cada grito em baixo corresponde um grito em cima.
    Reconheço o grito que sai da noite. São os vivos e os mortos... Mas então que significação tem isto no Universo, a dizer palavras inúteis no meio desta balbúrdia, desta escuridão cerrada, deste dourado feroz, deste redemoinho sem nome? Para que é que eu existo e tu existes? Para que é que eu grito e tu gritas? Isto não és tu! Isto não sou eu! Isto é a vida temerosa, de que não representas senão uma insignificante partícula. Tu não és nada, a vida é tudo. O combate é incessante entre os vivos e os mortos, entre os mortos e os vivos. Todos gritam aos mesmo tempo, todos caminham ao mesmo tempo para o mesmo fim esplêndido. - Oh, eu quero crer! - Por que é que gritas? - Fecha os olhos! Fecha os olhos! - Agora sou eu quem falo! Agora são eles que falam!...
    Oh, minha alma, pois eras tu! Agora te reconheço! Capaz de tudo, capaz de baixezas e capaz de sacrifícios. Tão pequena! Tão transida! Não vales nada e pudeste tanto! Oh, minha alma, pois eras tu, eras tu! Pudeste arcar com o Universo, olhar Deus, construir Deus. Devo-te tudo: a ilusão, a tinta do céu, o sonho errático das vastas florestas. Eras tu! Eras tu!... Tem-me custado a dar contigo, tão mesquinha e capaz de povoares o céu de estrelas e o mundo de sonho. Atreves-te a tudo. Afirmaste. Negaste. Eras tu, sempre dorida, sempre ansiosa, nunca satisfeita, e coubeste dentro de quatro paredes. Tornaste-me a vida amarga. Encheste-me de ridículo. Atiraste-me aos encontrões contra a massa cega e compacta, levaste-me como restos de folhas nesta procela de sonho. Foste a melhor e a pior parte do meu ser.


- Raul Brandão, in Húmus.