domingo, 27 de janeiro de 2013

Café

    Ela está debaixo do duche. A água cai-lhe sobre o corpo e detém-se na formação de repentinas estalactites no abismo daqueles seios que beijaste durante tantas horas. Pões café no filtro, calculas a quantidade de água para quatro chávenas e carregas no botão encarnado.
    Ouves o som da água que ferve electricamente e que gota a gota vai caindo sobre o café, formando aquele lodo aromático. Argamassa que une os tijolos da manhã.
    Ela aparece com o seu roupão de banho atado descuidadamente. Podes ver-lhe as coxas reluzentes, ainda húmidas. Retiras a cafeteira, leva-la para a mesa, dispões as chávenas, verificas que os cravos persistem na sua agónica estatura rósea. Não são tão puramente perecíveis como as rosas de Maio.
    Aparece agora com uma toalha atada como um turbante, podes ver-lhe a nuca, o pescoço liso e fresco, a cheirar a pó de talco. Debaixo do turbante uma pequenina mecha de cabelos escapa às intenções da secagem e adere à pele com aquela estranha presença de loira petrificação. Ela senta-se, tu também, e, à vossa frente, ocupa o seu lugar o seu silêncio de sempre.
    Serves o café lentamente, estendes a mão para ela com a chávena servida, enches a tua, ofereces-lhe com o olhar as coisas que estão em cima da mesa. Pão, manteiga, marmelada, e outros alimentos que àquela hora e naquelas circunstâncias te parecem absolutamente insípidos. Verificas que ela não aceita, que simplesmente acende um cigarro e deita umas gotas de leite na sua chávena de café.
    Com a colher realizas breves movimentos giratórios que vão formando espirais, até que verificas a total dissolução do açúcar, que se desfez como pó de espelhos num poço, silenciosamente, respeitando assim o carácter intocável dessa manhã-silêncio que começa.
    Ela é finalmente a primeira a provar o café, e a sua primeira ideia é que talvez a chávena estivesse suja. Ergue os olhos, fita-te sem recriminações no mesmo instante em que tu bebes o primeiro  sorvo e pensas que talvez seja o cigarro o responsável por aquele sabor por enquanto inqualificável, mas é ela que diz:
- Este café sabe a fracasso.
    Então levantas-te, tiras-lhe a chávena da mão, pegas na cafeteira e deitas todo o líquido no lava-louça.
    O café  desaparece  entre  bolhas  quentes  e  fica  apenas  uma  obscura presença em redor da saída por onde desaguou. Abres um novo pacote, calculas água para quatro chávenas e estás de pé à espera de que, gota a gota, se vá formando outra vez aquela porção de lodo matinal.
Serves. Ela prova. Olha para ti tristemente. Não diz nada. Bebes da tua chávena e olhas para ela. Agora és tu que dizes:
- Pois é. Sabe a fracasso.
    Ela diz, benevolente, que pode ser coisa do açúcar ou do leite, e tu gritas que não puseste nem leite nem açúcar na tua chávena.
    Acende outro cigarro e empurra a sua chávena até ao centro da mesa, enquanto tu tiras todos os pacotes de café que guardas na despensa e com a ponta de uma faca os vais abrindo, vais apalpando frenético a sua fina textura com os dedos, provas, cospes, amaldiçoas, verificas que todo o café da casa tem o mesmo inevitável sabor a fracasso.
    Ela não provou nenhum e também o sabe.
    Diz-to sem palavras. Diz-to com o olhar perdido nos desenhos poliédricos da toalha. Diz-to com o fumo que se lhe escapa dos lábios.
    Regressas à cadeira sentindo uma espécie de tijolo na garganta. Queres falar. Queres dizer que tomaram juntos muitos cafés com sabor a esquecimento, com sabor a desprezo, com sabor a ódio amável  e monótono. Queres dizer que esta é a primeira vez que o café tem este desesperante sabor a fracasso. Mas não consegues articular uma só palavra.
    Ela levanta-se da  mesa.  Vai  ao  quarto  ao  lado. Veste-se  lentamente  e chega-te aos ouvidos o clique da pulseira dela. Avança até à porta, pega nas chaves, na carteira, no pequeno guia turístico, pensa em qualquer coisa antes de abrir a porta e volta para trás até ao teu lugar para te estampar na boca um  beijo frio, que, acredites ou não, tem o mesmo sabor a fracasso do café.

- Luís Sepulveda, in Encontro de amor num país em guerra.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Segunda Noite

    - Eu sei, Nástienhka, eu sei! - exclamei, sem poder conter a minha emoção. - E agora sei melhor do que nunca que perdi gratuitamente os melhores anos da minha vida! Agora sei-o, e, cruelmente, tenho disso uma consciência mais aguda desde que Deus a enviou junto de mim, a si, meu bom anjo, para mo dizer e provar. Agora, que estou sentado junto de si e falo consigo, tenho medo de pensar no futuro, pois no futuro será ainda a solidão, ainda esta vida inútil e reservada, e no que poderei depois sonhar quando, acordado, ao seu lado, fui de tal modo feliz? Seja bendita, minha querida, por não me ter repelido imediatamente, por me ter permitido dizer hoje que, pelo menos, pude viver duas noites em toda a minha vida!
    [...]
    - Nástienhka, Nástienhka! Sabe que conseguiu reconciliar-me por muito tempo comigo mesmo? Sabe que não terei, a partir de agora, uma opinião de mim próprio tão má como tive em certos momentos? Sabe que doravante não lamentarei mais, talvez, ter cometido um crime e um pecado na minha existência (porque uma vida como a minha é um crime e um pecado)? E não julgue que estou a exagerar; por amor de Deus, não pense uma coisa dessas, Nástienhka, porque vivi alturas de um tal desespero, de um tal tédio; porque nessas alturas começa a afigurar-se-me que nunca serei capaz de iniciar uma vida autêntica, porque me pareceu já que tinha perdido todo o tacto, toda a noção do presente, do real; porque, em suma, cheguei a amaldiçoar-me a mim próprio; porque após as minhas noites fantásticas passei por pavorosos momentos de abatimento! No entanto, ouvimos à nossa volta a multidão bramir e rodopiar no turbilhão da vida, ouvimos e vemos viver os homens, viver bem acordados, vemos que a vida não lhes é interdita, que a vida não se lhes evaporará como um sonho, uma visão, que a vida deles é perpetuamente renovada, eternamente jovem, sem que uma hora se assemelhe à seguinte, enquanto a tímida fantasia é sombria e monótona até à banalidade, escrava da sombra, da ideia, escrava da primeira nuvem que de súbito obscurecerá o Sol e sentimos que, por fim, essa inesgotável fantasia se fatiga, se esgota numa perpétua tensão, porque amadurecemos e superamos os nossos ideais antigos, os quais se desfazem em pó e se desmoronam, e, se não existe outra vida, é preciso construí-la mesmo com essas minas. E, no entanto, é algo de diferente aquilo que a alma solicita e quer! É, pois, em vão que o sonhador procura entre as cinzas dos seus velhos devaneios pelo menos qualquer cintilação para lhe soprar em cima e aquecer com um fogo novo o seu coração arrefecido e nele ressuscitar tudo o que outrora era tão agradável, tudo o que lhe sensibilizava a alma, tudo o que lhe fazia palpitar o sangue, tudo o que lhe inundava de lágrimas os olhos e iludia de maneira tão magnífica!
    [...]
    Até os sonhos nascem da vida, não é verdade?

- Fiodor Dostoievsky, in Noites Brancas.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A Vila, 15 de Novembro

    Debaixo destes tectos, entre cada quatro paredes, cada um procura reduzir a vida a uma insignificância. Todo o trabalho insano é este: reduzir a vida a uma insignificância, edificar um muro feito de pequenas coisas diante da vida. Tapá-la, escondê-la, esquecê-la. O sino toca a finados, já ninguém ouve o som a finados. A morte reduz-se a uma cerimónia, em que a gente se veste de luto e deixa cartões de visita. Se eu pudesse restringia a vida a um tom neutro, a um só cheiro, o mofo, e a vila a cor de mata-borrão. Seres e coisas criam o mesmo bolor, como uma vegetação criptogámica, nascida ao acaso num sítio húmido. Têm o seu rei, as suas paixões e um cheirinho suspeito. Desaparecem, ressurgem sem razão aparente e de um dia para o outro num palmo do Universo que se lhes afigura o mundo todo. Absorvem os mesmos sais, exalam os mesmos gases, e supuram uma escorrência fosforescente, que corresponde talvez a sentimentos, a vícios ou a discussões sobre a imortalidade da alma.
    As paixões dormem, o riso postiço criou cama, as mãos habituaram-se a fazer todos os dias os mesmos gestos. A mesma teia pegajosa envolve e neutraliza, e só um ruído sobreleva, o da morte que tem diante de si o tempo ilimitado para roer. Há aqui ódios que minam e contraminam, mas como o tempo chega para tudo, cada ano minam um palmo. A paciência é infinita e mete espigões pela terra dentro: adquiriu a cor da pedra e todos os dias cresce uma polegada. A ambição não avança um pé sem ter o outro assente, a manhã anda e desanda, e, por mais que se escute, não se lhe ouvem os passos. Na aparência é a insignificância a lei da vida: é a insignificância que governa a vila. É a paciência, que espera hoje, amanhã, com o mesmo sorriso humilde: - Tem paciência - e os seus dedos ágeis tecem uma teia de ferro. Não há obstáculo que a esmoreça. - Tem paciência - e rodeia, volta atrás, espera ano atrás de ano, e olha com os mesmos olhos sem expressão e o mesmo sorriso estampado. Paciência... paciência... Já a mentira é de outra casta, faz-se de mil cores e toda a gente a acha agradável. - Pois sim... pois sim.

- Raul Brandão, in Húmus.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

aka Remember Me

    Agora Não Morremos Nunca, porque não morremos nunca.

    Aguardem novidades.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A Vida das Marionetas

    Porque não me disseste logo ao princípio que eras casado antes que me prendesse a ti? Porquê tantas mentiras, tantas desculpas, tantas respostas evasivas, apenas o número de telefone do emprego, não o número de telefone de casa, a aldrabice de que moravas com a tua mãe, a tua mãe doente e o telefone a enervá-la, depois a história grave, quase de lágrima no olho.
- Vou dizer-te a verdade
    a seguir a um discurso patético
- Não te disse a verdade antes por medo de perder-te
    e a treta de uma relação sem amor
- Não sinto nada por ela
    mais irmãos que outra coisa, nunca se tocam, não têm relações, ela doente dos nervos, dependente de ti, tentativas de suicídio, angústias e tu com pena dela
- Unicamente pena percebes?
    e preocupado com os filhos coitados
- O que as crianças sofrem com isto
    o teu dever de dar-lhes uma vida equilibrada
- Não pediram para vir a este mundo pois não?
    fazendo, ao mesmo tempo, de pai e de mãe, a tua garantia de que isso não há-de durar sempre, é uma questão de meses, um ano vá lá, dois anos no máximo, os miúdos crescem entretanto, amadurecem, equilibram-se, não é fácil viverem com uma mãe que nem da cama sai, só lágrimas, só instabilidade, só caprichos, só gritos, tenho de lhe fazer ver as coisas pouco a pouco, de me aconselhar com o médico e ontem a Fátima para mim que te viu de braço dado com ela no cinema, que lhe segredavas sorrisos, que lhe davas a mão, que trazias aliança
    (onde escondes a aliança quando estás comigo?)
    que fingiste não a ver quando passou por ti, a Fátima ao passar por ti
- Olá Rui
    e tu a esconderes o alarme em sobrancelhas de espanto, a tua mulher a afastar-se zangada, a Fátima ainda a ouviu repetir
- Olá Rui?
    e tu embrulhado em explicações aflitas, uma pessoa de quem não te lembravas, uma antiga colega talvez, a prima de uma prima, tu a tranquilizá-la com um beijo, não uma doente, uma mulher normalíssima, segundo a Fátima parecida comigo com mais cinco ou seis anos, também de olhos claros, também loira com uma carteira igual à carteira que me deste nos anos e agora diz-me lá o que é que eu faço, como queres que te aceite, continue contigo, feita palhaço, a engolir fantasias, o que é que eu faço, conta-me, com um homem que me vigariza, me engana, me jura o que não há-de cumprir, o que é que eu faço com um escroque, Rui, és um escroque, não me toques, não fales, não me venhas com conversas
    (mexes tão bem nas palavras!)
    não me ponhas a mãozinha aí, tira a mãozinha daí, disse-te para tirares a mãozinha daí, vai-te embora antes que eu descubra o telefone da tua casa, ligue para lá, conte tudo à tua mulher, lhe explique o safardana que és, quero as chaves em cima desta mesa, quero que me desapareças da vista, me desampares a loja, metes-me nojo sabias, a única coisa que sinto por ti é nojo, repugnância, não passas de um rato morto, nem sequer te odeio, desprezo-te, não percebo como não vomito só de olhar para ti, se ao menos fosses inteligente, bonito, e não és inteligente nem bonito, para te falar com franqueza
    (e eu falo-te com franqueza é a nossa diferença)
    és um velho, cheiras a velho, se visses a tua cara, a tua barriga, as tuas rugas, o cabelinho branco, a careca, não vales nada Rui, convence-te que não vales nada, admite de uma vez por todas que não vales um chavo, desonesto, hipócrita, aldrabão, porque não disseste logo ao princípio que eras casado antes que me prendesse a ti, porque não foste sincero, se tivesses sido sincero eu até aceitava compreendes, sofria mas aceitava, esperava que te divorciasses, dava-te o que nunca dei a ninguém e que não merecias mas dava-te
    (não me interrompas)
    onde é que eu ia, ia que te dava o que nunca dei a ninguém, não me interrompas Rui, e que não merecias mas dav
    (pedi-te que não me interrompesses não pedi?)
    e que não merecias mas dava-te, não me pegues na mão, não te sentes aí, porque fizeste isto Rui, achas que mereço
    (afasta-te)
    achas que mereço isto, que mereço sofrer
    (por amor de Deus afasta-te)
    achas que devo ser infeliz por tua causa, responde se achas que devo ser infeliz por tua causa, não sorrias, não penses que te desculpo com essa facilidade toda, és velho, cheiras a velho, repara na tua corcunda, és um velho, convence-te, um gaiteiro de um velho e hás-de morrer desajeitado Rui, não hás-de compreender, por dúzias de anos que dures, que o fecho do soutien é para o outro lado que abre.

- António Lobo Antunes, in Terceiro Livro de Crónicas.