domingo, 14 de abril de 2013

O Relógio

    Na mesa de escrever o relógio do meu bisavô. É uma ferradura vertical, de metal doirado, sobre um rectângulo de mármore. No topo da ferradura uma cabeça de cavalo. O freio do cavalo forma um ângulo, em anzol para diante, que segura o relógio esférico, de metal doirado também, com um vidro convexo. O meu bisavô era médico e o relógio ter-lhe-á sido dado por um doente agradecido. Até à sua morte o meu avô, seu genro, teve-o sempre na secretária dele. Agora está aqui comigo, à minha frente, dando horas com mais de um século. Do meu bisavô conheço retratos, meia dúzia de episódios, alguns artigos científicos. Doente de cancro suicidou-se com um tiro na cabeça em mil novecentos e dezoito. Andava pelos cinquenta e cinco anos, chamava-se Alfredo dos Santos Figueiredo, e o meu pai conta que se lembra de lhe pegarem ao colo para que beijasse o cadáver no caixão. O meu bisavô parou. Os ponteiros do relógio não pararam nunca. Há-de chegar o momento em que eu pare. Os ponteiros do relógio continuarão a mover-se. No freio em anzol uma chave dupla: a ponta mais grossa dá corda ao mecanismo, a mais estreita acerta os ponteiros. Onze e seis neste momento. De um dia meu? De um dia do meu bisavô? Que marcariam os ponteiros ao encostar as pistolas às têmporas, dado que se matou com uma arma em cada mão? Parece que foi ao fim da tarde. Ou ao fim da manhã? Sou neto da sua única filha e dizem que me pareço fisicamente com ele. Qual de nós escreve isto? Ia de carruagem visitar os pacientes, dava consultas na farmácia que à época se grafava Pharmacia. Cinquenta e cinco anos: praticamente a minha idade agora. Como lhe chamaria se viesse aqui? Senhor doutor? Bisavô? Nada? Se, por exemplo, a sua palma no meu ombro a perguntar-me
- Tu quem és?
    responder
- O seu bisneto
    responder
- O neto da sua filha Eva
    ou ficar calado a olhar a sua cara séria, triste, a cara dos retratos em que nunca sorri? Olho o relógio que deve ter olhado muitas vezes, penso nas feições atribuladas e graves. Nem os braços lhe conheço: para baixo do início do peito a fotografia acaba e ele não existe. Nenhum de nós se calhar existe mas existe o relógio. Onze e dezoito da noite e os meus dedos na ferradura, no cavalo. Onde param os dele? Perguntas e perguntas, a janela aberta e as árvores iluminadas pelos candeeiros em baixo. O sossego dos ramos, o mistério dos ramos, folhas que brilham. Estou sozinho aqui, nesta mesa muito alta, com um banco muito alto, em que posso escrever de pé. Gosto de escrever de pé. O neto que obrigaram a beijá-lo e conserva desse episódio uma impressão horrorizada é um homem velho agora, a quem a saúde se está a acabar. Dá ideia de ir ficando deserto por dentro, no interior das feições devastadas. O relógio onze e vinte e seis, intacto. A esfera de metal doirado balança a uma leve pressão do mindinho. Anda uma espécie de angústia nesta crónica, um aperto no coração do coração. Por qual de nós? As folhas brilham mais neste momento. A esferográfica hesita, continua. As frases juntam-se sozinhas, não precisam de mim. Tantas coisas que não sei. Gostava de o ter conhecido, gostava de ter gostado de si. Chamo-me António como o seu genro, faço livros, existem ocasiões em que me sinto aflitíssimo. Vou aprendendo a disfarçar. Sou capaz? Não sou capaz? Hoje temos a mesma idade, senhor. Quem ficar um dia com o relógio pensará na gente? De que nos servirá no caso de pensar na gente? À falta de melhor espero que o relógio seja eterno. Engraçado sentir-me assim comovido. Em nome de quê? Duas pistolas. Só a do lado esquerdo disparou. A carta em que pedia desculpa por matar-se pingada do seu sangue, a caligrafia que se ia tornando incompreensível, rabiscos para o fim. Seus? Meus? Estou em Benfica onde você se suicidou. Outra Benfica. O que, da sua, me resta na memória, dói-me. Então vem-me à ideia o sorriso da minha tia Bia e  sorrio também. Por amor dela. E um pouco, por estranho que pareça, por amor de si. Onze e quarenta e quatro. Por amor de nós. Como o sangue que não ficou na carta segue nas minhas veias, de certeza que por amor de nós.

- António Lobo Antunes, in Terceiro Livro de Crónicas.


~ Para si, avô. Como o sangue que não ficou na carta segue nas minhas veias, de certeza que por amor de nós. ~

1 comentário:

  1. Gostei à primeira vista! Segui o blog!

    http://abertodemadrugada.blogspot.pt

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