quarta-feira, 15 de abril de 2015

VI. Um avião enterrado

    Ele próprio teria preferido morrer numa gruta, na intimidade daquele abrigo, com os nadadores em redor, agarrados à parede de rocha. Bermann contara-lhe que nos jardins asiáticos se podia olhar para uma pedra e imaginar a ondulação da água, olhar para um lago imóvel e ver nele a dureza da rocha. Mas ela era uma mulher criada entre jardins, no meio da humidade, com palavras como caramanchão e ouriço-chacheiro. A sua paixão pelo deserto era temporária. Aprendera a amar a austeridade do deserto por causa dele, no desejo de entender o seu bem-estar naquela solidão. Era à chuva que ela se sentia melhor, à chuva ou numa casa de banho fumegante de ar líquido, na humidade sonolenta, voltando para dentro depois de se debruçar da janela do quarto dele, naquela noite de chuva no Cairo, e vestindo as roupas com o corpo ainda molhado, de modo a conservar cada gota de água. Tal como amava as tradições familiares, a cortesia cerimoniosa, os velhos poemas sabido de cor. Tê-la-ia horrorizado morrer sem nome. Porque o fio condutor que a ligava aos seus antepassados era uma coisa táctil, ao passo que ele apagara o trilho de onde viera. Espantava-o que ela o tivesse amado apesar desse seu pendor para o anonimato.
    Estava deitada de costas, como os jazentes dos túmulos medievais.
    Abeirei-me dela todo nu, como teria feito no nosso quarto do Sul do Cairo, desejoso de a despir, de a amar uma vez mais.
    Será tão terrível aquilo que eu fiz? Não perdoamos tudo a um amante? Perdoamos o egoísmo, o desejo, a manha. Desde que sejamos nós a motivá-los. Pode-se fazer amor com uma mulher que tem um braço partido, com uma mulher cheia de febre. Um dia ela chupou-me o sangue de um golpe que fiz na mão, tal como eu provara e bebera o seu sangue menstrual. Há palavras europeias que não se deixam traduzir satisfatoriamente para outras línguas. Felhomaly. A penumbra dos túmulos. Com a conotação de intimidade, a intimidade que aí reina entre mortos e vivos.
    Tomei-a nos braços, tirando-a do seu nicho de sono. As roupas reduzidas a frágeis teias de aranha. Que eu esfarrapei ao pegar-lhe.
    Trouxe-a para o sol. Vesti-me. A minha roupa seca e hirta do calor das pedras.
    As minhas mãos entrelaçadas formavam um assento para ela repousar. Assim que cheguei ao areal virei-a ao contrário, de frente para mim, cabeça por cima do meu ombro. Sentia-a etérea, quase sem peso. Estava habituado a tê-la assim nos braços, das vezes em que a fizera rodopiar no quarto, à minha volta, como um reflexo humano da ventoinha - braços abertos, dedos como estrelas-do-mar.

(...)

    Na gruta, ao fim de todos aqueles meses de separação e de raiva, tinham-se reunido e falado uma vez mais como amantes, arredando o rochedo que haviam colocado entre ambos, em obediência a uma lei social a que nenhum dos dois dava valor.
    No jardim botânico, cheia de determinação e fúria, ela batera com a cabeça no portão. Demasiado orgulhosa para ser uma amante, um segredo, Recusava-se a viver num mundo dividido em compartimentos. E ele virara-se para ela, de dedo espetado, Ainda não tenho saudades tuas.
    Hás-de ter.

(...)

    Como é que desataste a odiar-me?, murmura ela a Gruta dos Nadadores, falando por entre as dores dos ferimentos. Um pulso partido. Costelas afundadas. Foste horrível comigo. Foi então que o meu marido desconfiou de ti. Ainda hoje odeio essa tua faceta - sumires-te assim sem mais nem menos no deserto ou nos bares.
    No Parque Groppi, quem me deixou foste tu.
    Porque tu não me querias para mais nada.
    Porque tu disseste que o teu marido ia enlouquecer. E enlouqueceu mesmo.
    Não por muito tempo. Eu enlouqueci antes dele, tu mataste tudo dentro de mim. Beija-me, está bem? Pára de te defender. Beija-me e chama-me pelo nome.
    Os seus corpos tinham-se unido cobertos de suor e perfumes, ansiosos por trespassar essa delgada película com a língua ou os dentes, como se procurassem debaixo dela o carácter do outro, para lho arrancarem do corpo no acto do amor.
    Agora ela não tem pó de talco no braço, nem água de rosas na coxa.
    Pensas que és um iconoclasta, mas não és. Limitas-te a mudar de sítio, ou a substituir aquilo que não podes ter. Se falhas nalguma coisa, refugias-te noutra. Nada te modifica. Quantas mulheres já tiveste? Eu deixei-te por saber que nunca ia conseguir modificar-te. Às vezes ficavas tão quieto no quarto, às vezes tão mudo, como se ao revelar mais uma polegada do teu carácter cometesses a maior das traições.

- Michael Ondaatje, in O Doente Inglês.

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