quarta-feira, 15 de abril de 2015

V. Katharine

    Ao apartamento só chega a luz do rio e do deserto para lá do rio. Incide no pescoço dela, nos seus pés, na cicatriz da vacina do seu braço direito, de que ele tanto gosta. Ela está sentada na cama abraçada à sua própria nudez. Ele passa a palma da mão aberta pelo suor do ombro dela. Este ombro é meu, pensa, não é do marido dela, este ombro é meu. Como amantes, ofereceram um ao outro partes dos seus corpos, como essa. Neste quarto na periferia do rio.
    Ao longo das poucas horas de que dispõem, o quarto foi mergulhando nesta semiobscuridade. Apenas a luz do rio e do deserto. Só quando sentem o raro embate da chuva é que vão à janela e estendem os braços, debruçando-se para banharem do corpo o que puder ser banhado. As ruas enchem-se de gritos, saudando o breve aguaceiro.
- Nunca mais no vamos amar. Nunca mais nos podemos ver.
- Eu sei - diz ele.
    A noite da insistência dela na separação.
    Ela sentou-se, enclausurada em si mesma, presa na couraça da sua consciência implacável. Que ele não consegue transpor. Só o seu corpo está próximo dela.
- Nunca mais. Aconteça o que acontecer.
- Sim.
- Acho que ele vai enlouquecer. Percebes?
    Ele não diz nada, desistindo da tentativa de a puxar para dentro de si.
    Uma hora depois saem do quarto, mergulhando na atmosfera seca da noite. Ouvem ao longe o gramofone do cinema «Music for All», de janelas abertas por causa do calor. Terão de se separar antes que o cinema feche, pois poderão de lá sair conhecidos dela.
    Estão no jardim botânico, junto da Catedral de Todos os Santos. Ela vê uma lágrima e inclina-se para a lamber, recolhendo-a na boca. Como recolheu o sangue da mão dele quando ele se cortou a cozinhar para ela. Sangue. Lágrima. Sente que se lhe esvaíram todos os fluídos do corpo, sente-se cheio de fumo. A única coisa viva é a consciência do desejo e da ausência que o futuro lhe reserva. Aquilo que gostaria de dizer não o pode dizer a esta mulher aberta como uma ferida, ainda imortal na sua juventude. Não pode alterar o que mais ama nela, a sua aversão ao compromisso, onde o romantismo dos poemas que ela tanto ama ainda se enquadra naturalmente no mundo real. Ele sabe que sem essas qualidades não há ordem no mundo.
    A noite da insistência dela. Vinde e oito de Setembro. A chuva nas árvores já seca pelo calor do luar. Nem uma gota fresca para cair sobre ele como uma lágrima. Esta despedida no Parque Groppi. Não lhe perguntou se o marido está em casa, naquele alto rectângulo de luz, do outro lado da rua.
    Ergue os olhos para a fila de grandes palmeiras de punhos estendidos. Como a cabeça e os cabelos dela, por cima dele, quando ela era sua amante.
    Agora não há beijos. Um abraço apenas. Ele desprende-se dela e afasta-se; depois vira-se para trás. Ela continua no mesmo sítio. Ele retrocede e pára a poucos metros dela, dedo em riste a sublinhar a frase.
- Só quero que saibas uma coisa. Ainda não tenho saudades tuas.
    A cara dele horrível de se ver, esforçando-se por sorrir. No movimento de lhe virar a cara, ela bate na ombreira do portão. Ele vê-a ferir-se, repara no esgar de dor. Mas estão já separados, confinados em si mesmos, erguidas as muralhas a instância dela. O brusco virar da cabeça, a dor do embate são acidentais, são intencionais. Ela leva a mão à têmpora.
- Hás-de tê-las - diz ela.

    A partir deste ponto das suas vidas, segredara-lhe ela horas antes, ou encontramos ou perdemos as nossas almas.

    Como é que acontece uma coisa assim? Apaixonar-se e ver-se desconjuntado.
    Eu estava nos braços dela. Arregaçara-lhe a manga até ao ombro para lhe ver a cicatriz da vacina. Adoro esta marca, disse eu. Essa pálida auréola no braço. Vejo o instrumento arranhá-la, introduzir-lhe no corpo o soro e depois soltar-se, libertar-se da sua pele, há muito tempo, tinha ela nova anos, no ginásio de uma escola.

- Michael Ondaatje, in O Doente Inglês.

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