sábado, 4 de janeiro de 2014

A Outra Coisa

30 de Novembro

    Chega o momento em que me perco, em que tenho medo de mim mesmo, em que me atemoriza o som da minha própria voz. Quem sou eu? Os outros? São os outros? São eles que falam, que ordenam, que me impelem? Eu sou os mortos! Eu sou os mortos! Eu sou uma série de fantasmas, que se açulam entre mim e mim. Reconheço-os. O gesto esboçado há milhares de anos, e perdido, consumido, consegue hoje realizar-se, o gesto que a morte calou numa boca ignorada, faz eco no mundo. Todos os sonhos são realidades, os mais altos, os mais humildes, os mais belos e os mais grotescos. Só os sonhos são realidade nesta noite quieta e caiada, com uma mancha vermelha de pólo a pólo.
   (...)
    A morte faz estremecer o mundo até à raiz. A morte já não tem a mesma significação. A morte é agora inútil e anda à solta no infinito, desgrenhada, dorida e dourada. Desespera-se. Tenho medo de lhe tocar. O drama que se passa em cima é maior que o que se passa em baixo. É pior este tumulto de inferno, este clamor de que não chegam as vozes, esta força incoerente de pé - todas as forças de pé - posta a caminho para o desconhecido. É pior. E a cada grito em baixo corresponde um grito em cima.
    Reconheço o grito que sai da noite. São os vivos e os mortos... Mas então que significação tem isto no Universo, a dizer palavras inúteis no meio desta balbúrdia, desta escuridão cerrada, deste dourado feroz, deste redemoinho sem nome? Para que é que eu existo e tu existes? Para que é que eu grito e tu gritas? Isto não és tu! Isto não sou eu! Isto é a vida temerosa, de que não representas senão uma insignificante partícula. Tu não és nada, a vida é tudo. O combate é incessante entre os vivos e os mortos, entre os mortos e os vivos. Todos gritam aos mesmo tempo, todos caminham ao mesmo tempo para o mesmo fim esplêndido. - Oh, eu quero crer! - Por que é que gritas? - Fecha os olhos! Fecha os olhos! - Agora sou eu quem falo! Agora são eles que falam!...
    Oh, minha alma, pois eras tu! Agora te reconheço! Capaz de tudo, capaz de baixezas e capaz de sacrifícios. Tão pequena! Tão transida! Não vales nada e pudeste tanto! Oh, minha alma, pois eras tu, eras tu! Pudeste arcar com o Universo, olhar Deus, construir Deus. Devo-te tudo: a ilusão, a tinta do céu, o sonho errático das vastas florestas. Eras tu! Eras tu!... Tem-me custado a dar contigo, tão mesquinha e capaz de povoares o céu de estrelas e o mundo de sonho. Atreves-te a tudo. Afirmaste. Negaste. Eras tu, sempre dorida, sempre ansiosa, nunca satisfeita, e coubeste dentro de quatro paredes. Tornaste-me a vida amarga. Encheste-me de ridículo. Atiraste-me aos encontrões contra a massa cega e compacta, levaste-me como restos de folhas nesta procela de sonho. Foste a melhor e a pior parte do meu ser.


- Raul Brandão, in Húmus.

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