quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

A Vida das Marionetas

    Porque não me disseste logo ao princípio que eras casado antes que me prendesse a ti? Porquê tantas mentiras, tantas desculpas, tantas respostas evasivas, apenas o número de telefone do emprego, não o número de telefone de casa, a aldrabice de que moravas com a tua mãe, a tua mãe doente e o telefone a enervá-la, depois a história grave, quase de lágrima no olho.
- Vou dizer-te a verdade
    a seguir a um discurso patético
- Não te disse a verdade antes por medo de perder-te
    e a treta de uma relação sem amor
- Não sinto nada por ela
    mais irmãos que outra coisa, nunca se tocam, não têm relações, ela doente dos nervos, dependente de ti, tentativas de suicídio, angústias e tu com pena dela
- Unicamente pena percebes?
    e preocupado com os filhos coitados
- O que as crianças sofrem com isto
    o teu dever de dar-lhes uma vida equilibrada
- Não pediram para vir a este mundo pois não?
    fazendo, ao mesmo tempo, de pai e de mãe, a tua garantia de que isso não há-de durar sempre, é uma questão de meses, um ano vá lá, dois anos no máximo, os miúdos crescem entretanto, amadurecem, equilibram-se, não é fácil viverem com uma mãe que nem da cama sai, só lágrimas, só instabilidade, só caprichos, só gritos, tenho de lhe fazer ver as coisas pouco a pouco, de me aconselhar com o médico e ontem a Fátima para mim que te viu de braço dado com ela no cinema, que lhe segredavas sorrisos, que lhe davas a mão, que trazias aliança
    (onde escondes a aliança quando estás comigo?)
    que fingiste não a ver quando passou por ti, a Fátima ao passar por ti
- Olá Rui
    e tu a esconderes o alarme em sobrancelhas de espanto, a tua mulher a afastar-se zangada, a Fátima ainda a ouviu repetir
- Olá Rui?
    e tu embrulhado em explicações aflitas, uma pessoa de quem não te lembravas, uma antiga colega talvez, a prima de uma prima, tu a tranquilizá-la com um beijo, não uma doente, uma mulher normalíssima, segundo a Fátima parecida comigo com mais cinco ou seis anos, também de olhos claros, também loira com uma carteira igual à carteira que me deste nos anos e agora diz-me lá o que é que eu faço, como queres que te aceite, continue contigo, feita palhaço, a engolir fantasias, o que é que eu faço, conta-me, com um homem que me vigariza, me engana, me jura o que não há-de cumprir, o que é que eu faço com um escroque, Rui, és um escroque, não me toques, não fales, não me venhas com conversas
    (mexes tão bem nas palavras!)
    não me ponhas a mãozinha aí, tira a mãozinha daí, disse-te para tirares a mãozinha daí, vai-te embora antes que eu descubra o telefone da tua casa, ligue para lá, conte tudo à tua mulher, lhe explique o safardana que és, quero as chaves em cima desta mesa, quero que me desapareças da vista, me desampares a loja, metes-me nojo sabias, a única coisa que sinto por ti é nojo, repugnância, não passas de um rato morto, nem sequer te odeio, desprezo-te, não percebo como não vomito só de olhar para ti, se ao menos fosses inteligente, bonito, e não és inteligente nem bonito, para te falar com franqueza
    (e eu falo-te com franqueza é a nossa diferença)
    és um velho, cheiras a velho, se visses a tua cara, a tua barriga, as tuas rugas, o cabelinho branco, a careca, não vales nada Rui, convence-te que não vales nada, admite de uma vez por todas que não vales um chavo, desonesto, hipócrita, aldrabão, porque não disseste logo ao princípio que eras casado antes que me prendesse a ti, porque não foste sincero, se tivesses sido sincero eu até aceitava compreendes, sofria mas aceitava, esperava que te divorciasses, dava-te o que nunca dei a ninguém e que não merecias mas dava-te
    (não me interrompas)
    onde é que eu ia, ia que te dava o que nunca dei a ninguém, não me interrompas Rui, e que não merecias mas dav
    (pedi-te que não me interrompesses não pedi?)
    e que não merecias mas dava-te, não me pegues na mão, não te sentes aí, porque fizeste isto Rui, achas que mereço
    (afasta-te)
    achas que mereço isto, que mereço sofrer
    (por amor de Deus afasta-te)
    achas que devo ser infeliz por tua causa, responde se achas que devo ser infeliz por tua causa, não sorrias, não penses que te desculpo com essa facilidade toda, és velho, cheiras a velho, repara na tua corcunda, és um velho, convence-te, um gaiteiro de um velho e hás-de morrer desajeitado Rui, não hás-de compreender, por dúzias de anos que dures, que o fecho do soutien é para o outro lado que abre.

- António Lobo Antunes, in Terceiro Livro de Crónicas.

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