domingo, 5 de julho de 2015

6

    No Inverno a Escola era feia e triste. As mãos enregeladas, muitas delas cheias de frieiras, mal podiam pegar nas canetas. As orelhas doíam, a humidade do rio subia pela encosta acima e atravessava a roupa que era pouca e leve e muitas vezes rota e remendada. Eu olhava os pés descalços e cheios de feridas dos meus companheiros, as cabeças peladas, os rostos cobertos de impingens e sentia uma repugnância misturada com revolta.
    Porque é que uns, poucos, tinham sapatos e outros, a maior parte, não?
    Perguntei ao professor e ele ficou atrapalhado. Perguntei em casa e ficaram incomodados. Fiz muitas vezes essa pergunta. E de cada vez que a fazia sentia que estava a fazer uma pergunta inconveniente. Nunca ninguém me respondeu e continuo, de certo modo, a perguntar.
    Porque ainda sinto o frio da escola. Ainda sinto o cheiro a pobreza, o pouco. Foi sobretudo isso que aprendi, além da gramática, das contas, da História Pátria, dos rios, das serras e das linhas de caminho-de-ferro. Aprendi a conjugar os verbos e nunca foi preciso o professor Lencastre virar-me de cabeça para baixo. Mas a quem tenho eu de agarrar pelos pés e bater com a cabeça no chão para que de uma vez por todas me digam porque é que uns usavam sapatos e outros não?

- Manuel Alegre, in Alma.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

(15)

    São cinco da manhã e juro que não sinto a tua falta. A Dóri está lá dentro a dormir de barriga para cima, de braços abertos crucificados no lençol, e a dentadura postiça, descolada do céu da boca, avança e recua ao ritmo da respiração num ruído húmido de ventosa. Bebemos ambos a aguardente da cozinha pelo púcaro de folha, sentados nus na cama que o gás de guerra tornou inabitável carbonizando até as folhas estampadas das fronhas, escutei-lhe as confidências prolixas, enxuguei-lhe o choro confuso que me tatuou o cotovelo de um arbusto de rímel, puxei-lhe o cobertor até ao pescoço à laia de um sudário piedoso sobre um corpo desfeito, e vim para a varanda arrancar os dejectos endurecidos dos pássaros. Está frio, as casas e as árvores nascem lentamente do escuro, o mar é uma toalha cada vez mais clara e perceptível, mas não penso em ti. Palavra de honra que não penso em ti. Sinto-me bem, alegre, livre, contente, oiço o último comboio lá em baixo, adivinho as gaivotas que acordam, respiro a paz da cidade ao longe, desdobro-me num sorriso feliz e apetece-me cantar. Se eu tivesse telefone e me telefonasses agora deverias encostar cuidadosamente o auscultador à orelha numa expectativa de búzio: através das espiras de baquelite, vindo de quilómetros de distância, desta varanda de betão suspensa sobre o fim da noite, terias, juntamente com o eco do meu silêncio, o vitorioso eco do meu silêncio, o piano amortecido das ondas. Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto sério e responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda, chegarei a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu vocabulário de obscenidades pontiagudas. Talvez mesmo, meu amor, que compre uma tapeçaria de tigres como a do Senhor Ferreira: podes achar idiota mas preciso de qualquer coisa que me ajude a existir.

- António Lobo Antunes, in Memória de Elefante.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

VI. Um avião enterrado

    Ele próprio teria preferido morrer numa gruta, na intimidade daquele abrigo, com os nadadores em redor, agarrados à parede de rocha. Bermann contara-lhe que nos jardins asiáticos se podia olhar para uma pedra e imaginar a ondulação da água, olhar para um lago imóvel e ver nele a dureza da rocha. Mas ela era uma mulher criada entre jardins, no meio da humidade, com palavras como caramanchão e ouriço-chacheiro. A sua paixão pelo deserto era temporária. Aprendera a amar a austeridade do deserto por causa dele, no desejo de entender o seu bem-estar naquela solidão. Era à chuva que ela se sentia melhor, à chuva ou numa casa de banho fumegante de ar líquido, na humidade sonolenta, voltando para dentro depois de se debruçar da janela do quarto dele, naquela noite de chuva no Cairo, e vestindo as roupas com o corpo ainda molhado, de modo a conservar cada gota de água. Tal como amava as tradições familiares, a cortesia cerimoniosa, os velhos poemas sabido de cor. Tê-la-ia horrorizado morrer sem nome. Porque o fio condutor que a ligava aos seus antepassados era uma coisa táctil, ao passo que ele apagara o trilho de onde viera. Espantava-o que ela o tivesse amado apesar desse seu pendor para o anonimato.
    Estava deitada de costas, como os jazentes dos túmulos medievais.
    Abeirei-me dela todo nu, como teria feito no nosso quarto do Sul do Cairo, desejoso de a despir, de a amar uma vez mais.
    Será tão terrível aquilo que eu fiz? Não perdoamos tudo a um amante? Perdoamos o egoísmo, o desejo, a manha. Desde que sejamos nós a motivá-los. Pode-se fazer amor com uma mulher que tem um braço partido, com uma mulher cheia de febre. Um dia ela chupou-me o sangue de um golpe que fiz na mão, tal como eu provara e bebera o seu sangue menstrual. Há palavras europeias que não se deixam traduzir satisfatoriamente para outras línguas. Felhomaly. A penumbra dos túmulos. Com a conotação de intimidade, a intimidade que aí reina entre mortos e vivos.
    Tomei-a nos braços, tirando-a do seu nicho de sono. As roupas reduzidas a frágeis teias de aranha. Que eu esfarrapei ao pegar-lhe.
    Trouxe-a para o sol. Vesti-me. A minha roupa seca e hirta do calor das pedras.
    As minhas mãos entrelaçadas formavam um assento para ela repousar. Assim que cheguei ao areal virei-a ao contrário, de frente para mim, cabeça por cima do meu ombro. Sentia-a etérea, quase sem peso. Estava habituado a tê-la assim nos braços, das vezes em que a fizera rodopiar no quarto, à minha volta, como um reflexo humano da ventoinha - braços abertos, dedos como estrelas-do-mar.

(...)

    Na gruta, ao fim de todos aqueles meses de separação e de raiva, tinham-se reunido e falado uma vez mais como amantes, arredando o rochedo que haviam colocado entre ambos, em obediência a uma lei social a que nenhum dos dois dava valor.
    No jardim botânico, cheia de determinação e fúria, ela batera com a cabeça no portão. Demasiado orgulhosa para ser uma amante, um segredo, Recusava-se a viver num mundo dividido em compartimentos. E ele virara-se para ela, de dedo espetado, Ainda não tenho saudades tuas.
    Hás-de ter.

(...)

    Como é que desataste a odiar-me?, murmura ela a Gruta dos Nadadores, falando por entre as dores dos ferimentos. Um pulso partido. Costelas afundadas. Foste horrível comigo. Foi então que o meu marido desconfiou de ti. Ainda hoje odeio essa tua faceta - sumires-te assim sem mais nem menos no deserto ou nos bares.
    No Parque Groppi, quem me deixou foste tu.
    Porque tu não me querias para mais nada.
    Porque tu disseste que o teu marido ia enlouquecer. E enlouqueceu mesmo.
    Não por muito tempo. Eu enlouqueci antes dele, tu mataste tudo dentro de mim. Beija-me, está bem? Pára de te defender. Beija-me e chama-me pelo nome.
    Os seus corpos tinham-se unido cobertos de suor e perfumes, ansiosos por trespassar essa delgada película com a língua ou os dentes, como se procurassem debaixo dela o carácter do outro, para lho arrancarem do corpo no acto do amor.
    Agora ela não tem pó de talco no braço, nem água de rosas na coxa.
    Pensas que és um iconoclasta, mas não és. Limitas-te a mudar de sítio, ou a substituir aquilo que não podes ter. Se falhas nalguma coisa, refugias-te noutra. Nada te modifica. Quantas mulheres já tiveste? Eu deixei-te por saber que nunca ia conseguir modificar-te. Às vezes ficavas tão quieto no quarto, às vezes tão mudo, como se ao revelar mais uma polegada do teu carácter cometesses a maior das traições.

- Michael Ondaatje, in O Doente Inglês.

V. Katharine

    Ao apartamento só chega a luz do rio e do deserto para lá do rio. Incide no pescoço dela, nos seus pés, na cicatriz da vacina do seu braço direito, de que ele tanto gosta. Ela está sentada na cama abraçada à sua própria nudez. Ele passa a palma da mão aberta pelo suor do ombro dela. Este ombro é meu, pensa, não é do marido dela, este ombro é meu. Como amantes, ofereceram um ao outro partes dos seus corpos, como essa. Neste quarto na periferia do rio.
    Ao longo das poucas horas de que dispõem, o quarto foi mergulhando nesta semiobscuridade. Apenas a luz do rio e do deserto. Só quando sentem o raro embate da chuva é que vão à janela e estendem os braços, debruçando-se para banharem do corpo o que puder ser banhado. As ruas enchem-se de gritos, saudando o breve aguaceiro.
- Nunca mais no vamos amar. Nunca mais nos podemos ver.
- Eu sei - diz ele.
    A noite da insistência dela na separação.
    Ela sentou-se, enclausurada em si mesma, presa na couraça da sua consciência implacável. Que ele não consegue transpor. Só o seu corpo está próximo dela.
- Nunca mais. Aconteça o que acontecer.
- Sim.
- Acho que ele vai enlouquecer. Percebes?
    Ele não diz nada, desistindo da tentativa de a puxar para dentro de si.
    Uma hora depois saem do quarto, mergulhando na atmosfera seca da noite. Ouvem ao longe o gramofone do cinema «Music for All», de janelas abertas por causa do calor. Terão de se separar antes que o cinema feche, pois poderão de lá sair conhecidos dela.
    Estão no jardim botânico, junto da Catedral de Todos os Santos. Ela vê uma lágrima e inclina-se para a lamber, recolhendo-a na boca. Como recolheu o sangue da mão dele quando ele se cortou a cozinhar para ela. Sangue. Lágrima. Sente que se lhe esvaíram todos os fluídos do corpo, sente-se cheio de fumo. A única coisa viva é a consciência do desejo e da ausência que o futuro lhe reserva. Aquilo que gostaria de dizer não o pode dizer a esta mulher aberta como uma ferida, ainda imortal na sua juventude. Não pode alterar o que mais ama nela, a sua aversão ao compromisso, onde o romantismo dos poemas que ela tanto ama ainda se enquadra naturalmente no mundo real. Ele sabe que sem essas qualidades não há ordem no mundo.
    A noite da insistência dela. Vinde e oito de Setembro. A chuva nas árvores já seca pelo calor do luar. Nem uma gota fresca para cair sobre ele como uma lágrima. Esta despedida no Parque Groppi. Não lhe perguntou se o marido está em casa, naquele alto rectângulo de luz, do outro lado da rua.
    Ergue os olhos para a fila de grandes palmeiras de punhos estendidos. Como a cabeça e os cabelos dela, por cima dele, quando ela era sua amante.
    Agora não há beijos. Um abraço apenas. Ele desprende-se dela e afasta-se; depois vira-se para trás. Ela continua no mesmo sítio. Ele retrocede e pára a poucos metros dela, dedo em riste a sublinhar a frase.
- Só quero que saibas uma coisa. Ainda não tenho saudades tuas.
    A cara dele horrível de se ver, esforçando-se por sorrir. No movimento de lhe virar a cara, ela bate na ombreira do portão. Ele vê-a ferir-se, repara no esgar de dor. Mas estão já separados, confinados em si mesmos, erguidas as muralhas a instância dela. O brusco virar da cabeça, a dor do embate são acidentais, são intencionais. Ela leva a mão à têmpora.
- Hás-de tê-las - diz ela.

    A partir deste ponto das suas vidas, segredara-lhe ela horas antes, ou encontramos ou perdemos as nossas almas.

    Como é que acontece uma coisa assim? Apaixonar-se e ver-se desconjuntado.
    Eu estava nos braços dela. Arregaçara-lhe a manga até ao ombro para lhe ver a cicatriz da vacina. Adoro esta marca, disse eu. Essa pálida auréola no braço. Vejo o instrumento arranhá-la, introduzir-lhe no corpo o soro e depois soltar-se, libertar-se da sua pele, há muito tempo, tinha ela nova anos, no ginásio de uma escola.

- Michael Ondaatje, in O Doente Inglês.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

- (...) Mas estou tonta e um bocadinho triste. As coisas da terra são esquisitas. São diferentes das coisas do mar. No mar há monstros e perigos, mas as coisas bonitas são alegres. Na terra há tristeza dentro das coisas bonitas.
- Isso é por causa da saudade - disse o rapaz.
- Mas o que é a saudade? - perguntou a Menina do Mar.
- A saudade é a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora.


- Sophia de Mello Breyner Andresen, in A Menina do Mar.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Amy Elliott Dunne - The Day Of

    Nick loved me. A six-o kind of love: He looooooved me. But he didn’t love me, me. Nick loved a girl who doesn’t exist. I was pretending, the way I often did, pretending to have a personality. I can’t help it, it’s what I’ve always done: The way some women change fashion regularly, I change personalities. What persona feels good, what’s coveted, what’s au courant? I think most people do this, they just don’t admit it, or else they settle on one persona because they’re too lazy or stupid to pull off a switch.
    That night at the Brooklyn party, I was playing the girl who was in style, the girl a man like Nick wants: the Cool Girl. Men always say that as the defining compliment, don’t they? She’s a
cool girl. Being the Cool Girl means I am a hot, brilliant, funny woman who adores football, poker, dirty jokes, and burping, who plays video games, drinks cheap beer, loves threesomes and anal sex, and jams hot dogs and hamburgers into her mouth like she’s hosting the world’s biggest culinary gang bang while somehow maintaining a size 2, because Cool Girls are above all hot. Hot and understanding. Cool Girls never get angry; they only smile in a chagrined, loving manner and let their men do whatever they want. Go ahead, shit on me, I don’t mind, I’m the Cool Girl.
    Men actually think this girl exists. Maybe they’re fooled because so many women are willing to pretend to be this girl. For a long time Cool Girl offended me. I used to see men – friends, coworkers, strangers – giddy over these awful pretender women, and I’d want to sit these men down and calmly say: You are not dating a woman, you are dating a woman who has watched too many movies written by socially awkward men who’d like to believe that this kind of woman exists and might kiss them. I’d want to grab the poor guy by his lapels or messenger bag and say: The bitch doesn’t really love chili dogs that much – no one loves chili dogs that much! And the Cool Girls are even more pathetic: They’re not even pretending to be the woman they want to be, they’re pretending to be the woman a man wants them to be. Oh, and if you’re not a Cool Girl, I beg you not to believe that your man doesn’t want the Cool Girl. It may be a slightly different version – maybe he’s a vegetarian, so Cool Girl loves seitan and is great with dogs; or maybe he’s a hipster artist, so Cool Girl is a tattooed, bespectacled nerd who loves comics. There are variations to the window dressing, but believe me, he wants Cool Girl, who is basically the girl who likes every fucking thing he likes and doesn’t ever complain. (How do you know you’re not Cool Girl? Because he says things like: ‘I like strong women.’ If he says that to you, he will at some point fuck someone else. Because ‘I like strong women’ is code for ‘I hate strong women.’)
    I waited patiently – years – for the pendulum to swing the other way, for men to start reading Jane Austen, learn how to knit, pretend to love cosmos, organize scrapbook parties, and make out with each other while we leer. And then we’d say, Yeah, he’s a Cool Guy.
    But it never happened. Instead, women across the nation colluded in our degradation! Pretty soon Cool Girl became the standard girl. Men believed she existed – she wasn’t just a dreamgirl one in a million. Every girl was supposed to this girl, and if you weren’t, then there was something wrong with you.
    But it’s tempting to be Cool Girl. For someone like me, who likes to win, it’s tempting to want to be the girl every guy wants. When I met Nick, I knew immediately that was what he wanted, and for him, I guess I was willing to try. I will accept my portion of blame. The thing is, I was crazy about him at first. I found him perversely exotic, a good ole Missouri boy. He was so damn nice to be around. He teased things out in me that I didn’t know existed: a lightness, a humor, an ease. It was as if he hollowed me out and filled me with feathers. He helped me be Cool Girl – I couldn’t have been Cool Girl with anyone else. I wouldn’t have wanted to. I can’t say I didn’t enjoy some of it: I ate a MoonPie, I walked barefoot, I stopped worrying. I watched dumb movies and ate chemically laced foods. I didn’t think past the first step of anything, that was the key. I drank a Coke and didn’t worry about how to recycle the can or about the acid puddling in my belly, acid so powerful it could strip clean a penny. We went to a dumb movie and I didn’t worry about the offensive sexism or the lack of minorities in meaningful roles. I didn’t even worry whether the movie made sense. I didn’t worry about anything that came next. Nothing had consequence, I was living in the moment, and I could feel myself getting shallower and dumber. But also happy. 

- Gillian Flynn in Gone Girl.

The Curious Case of Benjamin Button. 2008.
Directed by David Fincher.